Reflexões #03 - Quem eu sou

Fonte: rare-gallery.com

    Cá estou eu novamente. Apesar de decidida a não entrar mais nesse blog, me senti inspirada a escrever alguma coisa hoje. Como eu disse no último post, minha palavra não é confiável.

    Eu tenho um outro blog, um diário online, que eu mantenho acesso restrito. Ultimamente, na busca por extrair mais informações sobre mim mesma, tenho postado por lá um exercício chamado "The Life Story Exercise", que é basicamente dividir sua vida em capítulos, narrar de 5 a 10 pontos-chave em cada um desses momentos, e tentar entender o que eu sentia naquele período e como isso se traduz na minha vida agora, e como eu acredito que repercutirá futuramente.

    Eu achava que eu sabia quem eu era, sabe? Acontece que nos últimos anos, algo aconteceu - as coisas que eu adorava fazer não me trazem mais alegria, quem eu achava ser não combina mais com quem eu sou. Traduzindo, eu mudei, mas não sei mais me identificar. Eu continuo usando os mesmos adjetivos que eu usava antes para me descrever, mas eles não fazem mais sentido.

    Eu me considerava leitora, era parte da minha identidade. Teve um ano da minha vida que eu li mais de 60 livros, e eu tenho certeza que em anos anteriores, eu li mais de 100, mas ainda não conhecia o Skoob para fazer esse registro. Ano passado eu li 14. E eu fiquei muito feliz, porque foi a maior quantidade de livros que eu li em 4 anos. Livros que eu adorava, agora me fazem revirar os olhos. Gêneros que eu achava que odiava, eu passei a gostar. Eu sei que leitura não é sobre números, mas sobre qualidade, mas o "apetite" que eu tinha por livros simplesmente sumiu. Aparece de vez em quando, mas muito raramente.

    É tão doido, né? Como mudanças ocorrem tão rápido e sem sequer percebermos. E assim eu me vi perdida em quem eu sou. A faculdade que eu fiz, o emprego que eu tinha, tudo que antes era tolerável, começou a parecer insuportável. E sim, eu estou ciente que tudo isso é bem "white people problem". Mas reclamar parece ser uma característica inerente a mim. Nunca satisfeita, sempre à procura de algo que eu não sei ao certo o que é.

    Recentemente eu perguntei para os meus pais se eles tinham sonhos de carreira, quando eram crianças. Para contextualizar, meus pais, assim como a grande maioria da geração deles, viviam em condições precárias e trabalhavam na roça desde pequenos. São a definição daquele meme de "No meu tempo, eu tinha que atravessar lama, rios e caminhar 50 km pra chegar à escola". Eles não tinham sonhos de carreira, porque não tinham opção de escolha. Eles pensavam em ser atendentes de loja, empacotadores de supermercado. Essa era a realidade que existia além da roça para eles, então era isso que eles esperavam do futuro. Quando cresceram, a realidade era outra, e eles tinham outras opções, apesar de ainda limitadas. As escolhas de vida deles não foi exatamente uma escolha baseada em personalidade e "o que será melhor para mim", mas em "o que vier é lucro", basicamente.

    A sensação que eu tenho é a de que eu estou passando por uma situação totalmente oposta à que meus pais passaram, de excesso de estímulos. Acho que todo mundo conhece aquela teoria, de que quanto maior a quantidade de opções, mais difícil a escolha se torna. E é isso que tem acontecido comigo. Eu olho para o futuro e vejo centenas, milhares de caminhos que eu poderia traçar, mas cada um com seus prós e contras. Escolher um é desistir de outro. Como eu disse em um post anterior, eu não tenho uma inclinação maior a nada, nunca tive um sonho de ser veterinária, astronauta, médica, arquiteta... Especialmente agora que eu perdi noção de quem eu sou, do que eu gosto, do que eu não gosto. Eu cresci com a máxima de "aim for the stars" (mire às estrelas = sonhe grande). E ir contra isso parece um pecado. Não só pra mim, mas para os meus pais também. Porque eles são a prova viva de que é possível mudar de condições, e eles querem que eu viva uma vida ainda mais confortável. Foi pra isso que eles pagaram minha educação, não foi? Vocês devem estar pensando "Mas eu tenho certeza que seus pais só querem que você seja feliz, independente do que você escolher ser". Eu achava isso, até falar pra minha mãe que tinha uma vontade de abrir um negócio de tortas, futuramente abrir um cafézinho/doceria e ouvir em retorno um "eu não criei minha filha para ser boleira". E eu sei que eu não tenho a obrigação de dar ouvidos a eles, mas eu não consigo. Tentei várias vezes me desvencilhar das opiniões deles, mas não consigo.

    Eu não sei para qual estrela mirar. Eu tenho as estrelas que a pressão dos meus pais aponta, para ter uma vida melhor que a deles, as estrelas que a pressão que eu coloco em mim mesma aponta, de honrar meus pais e os esforços deles, além das estrelas que eu ainda desconheço, porque não sei o que eu quero. Mas acima de tudo, eu tenho um pavor gigantesco do fracasso, e tudo isso combinado faz parecer que todas as estrelas estão 20x mais distantes do que realmente estão.

    Algo que eu tenho tido grandes dificuldades ultimamente é em achar um hobby que me agrade. Antigamente eu leria alguma distopia ou ficção, assistiria alguma série teen de qualidade duvidosa, ou assistiria algum YouTuber que eu venerava. Hoje, ler demanda uma certa motivação, e se a leitura não está agradável, eu a arrasto até tomar vergonha na cara e finalizar (já aconteceu de eu arrastar um livro por mais de dois anos). Assistir séries e vídeos no YouTube me dão a mesma sensação de quando eu tento jogar algum jogo de computador, ou rodar o feed de alguma rede social - "Por que eu tô perdendo tempo com isso? Eu poderia estar fazendo algo tão mais produtivo...". O que era um hobby virou uma razão para sentir culpa. Sim, eu fui contaminada pelo espírito workaholic americano. Fazer nada é mais um pecado e tudo que você faz tem que ter o propósito de te tornar uma pessoa melhor ou mais habilidosa.

    Recentemente eu li a biografia do Leonardo da Vinci, um livro que me fascinou. Ele passou a vida estudando por puro interesse. O que começava como um estudo para algum trabalho, virava uma obsessão por pura curiosidade. Também passou a vida em busca de reconhecimento além da pintura. Sempre planejava publicar um tratado sobre isso, sobre aquilo, finalizar determinada obra comissionada por alguém. Muita coisa era planejada, pouca coisa era concluída. Ele teve a inteligência de formar alianças com as pessoas certas, agradar quem precisava ser agradado. Então não entregar um trabalho não era realmente um problema, não ia fazê-lo passar fome. Obviamente, em troca ele tinha que agradar seus patronos, mas parecia ter um dom natural com pessoas.

    Atualmente, vivemos em um mundo que preza pela especialização. Na época de Leonardo, os gênios que hoje adoramos eram gênios porque não tinham limitações. Quem tinha conhecimento sobre várias coisas e como essas coisas se interligavam, se destacavam. Hoje, querer conhecer um pouco de tudo é ser indeciso, perdido.

    Eu nem sei mais aonde estou indo com esse desabafo. Me perdi uns 3 parágrafos atrás. Sintetizando, eu não sei quem eu sou, não sei o que quero fazer, tudo que eu sabia sobre mim não é mais verdade. A mentalidade atual sobre trabalho é insana e insustentável. Eu sinto que tenho que desistir das coisas que gosto para fazer dinheiro, ou desistir de fazer dinheiro para fazer as coisas que gosto. A moral disso tudo? Nenhuma. Vivemos em um sistema capitalista, e é assim que a banda toca por aqui. Toda pessoa no mundo teve que desistir de algo para conquistar outra coisa. Eu não sou exceção, você também não é, Leonardo da Vinci também não foi.

    Ainda assim, mesmo sabendo que essa é a norma, lá no fundo da minha mente, minha voz reclamona não para de "sussurrar gritando". Eu queria que as coisas fossem diferentes? Com certeza. Mas não são. E o mundo não vai mudar por mim, assim como eu não tenho a capacidade de mudar o mundo, porque a gente sabe que quem tem essa capacidade não está interessado em mudança. Eu ainda estou buscando brechas nesse contrato. Se algum dia achar, volto para compartilhar com vocês. Como sempre, até a próxima (quem sabe).

Comentários

  1. (1)

    Olá, Isadora.
    Recebi uma notificação por e-mail de que meu comentário anterior havia sido respondido. Faz muito tempo, viu :-). Já nem me lembrava.
    Curioso como essa conversa se arrastou por tanto tempo. Na realidade, já tive uma amiga italiana com quem me correspondi por e-mail meses e meses a fio. Conversávamos sobre cinema, literatura e o cotidiano. O nome dela é Anastasia. Ela se formou em filosofia na Università degli Studi di Milano, só que depois de formada foi trabalhar como escriturária (ou algo do tipo, visto que ela só me disse ser uma "payroll clerk") numa empresa que fazia consultorias na área trabalhista e contábil (ou algo assim). A semelhança é que também éramos dois estranhos conversando pela internet. A diferença é que a frequência de mensagens que nós tínhamos era bem maior: semanais, praticamente. Enfim, nem sei porque estou comentando disso.
    Seguinte: quando voltei para ler sua resposta e também o seu novo post, não senti muita vontade em responder, assim como você comentou. Mudei de ideia por dois motivos:
    O primeiro, que foge um pouco do tema, é uma espécie de conselho que ouvi numa entrevista. Foi uma do Christopher Hitchens, um cara que eu admiro muito. Ele faleceu já faz alguns anos. Tratou-se de uma pessoa excepcional, um jornalista muito bom no que fazia e que estava sempre na mídia americana. Teve muitas polêmicas em vida, como o fato dele ter defendido a Invasão ao Iraque e como a sua posição "pró-ateísmo" que, sem dúvidas, foi o que mais lhe rendeu reconhecimento em vida, apesar de sempre ter sido a que menos me interessou. Ele tem uma autobiografia muito legal (ou "memoir", como eles chamam), chamada Hitch-22 (em referência ao Catch-22, livro do qual ele gostava muito). Quando já muito doente, Hitchens cedeu uma entrevista ao famoso Jeremy Paxman, do programa Newsnight - BBC. Ao fim do encontro, ele dava uma espécie de "mensagem final" na qual dizia, basicamente, que sempre que você estivesse na dúvida de escrever algo a alguém, você deveria fazê-lo, pois o resultado pode surpreender. É claro que isso não é verdade para a grande maioria das interações, mas, ainda assim, eu tomo tal conselho a valor de face e o sigo quase que religiosamente. Afinal, se houver surpresa, mesmo que em um número ínfimo de vezes, já é o bastante para tirar a vida da mesmice.

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  2. (2)

    O segundo, mais coerente, é que essa sua nova postagem me lembrou de um livro que li recentemente. Trata muito da questão de identidade e da busca pela felicidade. É um livro muito bonito e rápido de ler. Eu realmente o recomendo a você. Caso opte por lê-lo, já adianto: se possível, não leia nenhuma resenha e nem mesmo a sinopse. Garanto que estragará (parte da) a experiência. Eu o li sem saber absolutamente nada do que tratava e tive uma surpresa positiva. Só conhecia o autor (por outras razões que não a literatura): o diplomata Alexandre Vidal Porto. O texto aborda uma ferida que certamente não é a sua, mas o ímpeto de mudança da personagem, bem como a narrativa, podem te interessar.
    O livro se chama 'Sergio Y. vai à América'.
    Enfim, desejo tudo de bom a você, Isadora. Boa sorte na sua vida. Espero que encontre o seu caminho. Não falei disso em minhas mensagens anteriores, mas eu particularmente tenho uma estrela (usando suas palavras) que miro continuamente. Eu gostaria muito de ser um acadêmico. Tenho isso em mente há muito tempo. Não que eu a ache a melhor profissão do mundo, mas é que eu realmente não me vejo em outra posição. Estudo para isso acontecer. É um caminho de muita incerteza e possível frustração, mas não consigo me imaginar fazendo qualquer outra coisa.
    O último parágrafo ficou em tom de "adeus", mas eu gostaria de acreditar que não seja o caso. Como disse no meu último comentário, estou à disposição. Lá deixei o meu endereço de e-mail e, sempre que você responder a um dos meus comentários, eu recebo uma notificação por e-mail (apesar de que não recebo notificações por posts novos).
    Enfim, caso você se interesse por manter essa conversa e, melhor ainda, caso leia o livro e tenha algo a compartilhar, estarei disposto a ouvir. Desculpe por eventuais erros de português, mas escrevi meio rápido (tenho uma extensão que só corrige ortografia, quando muito).
    Um abraço e até ano que vem :P
    Gustavo.

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